Torah sendo lida num bar-mitzvah

Povo que atravessou milênios espalhado pelo mundo, os judeus comemoram em 2018 setenta anos da criação do Estado de Israel – minúsculo território arrancado ao pântano, hoje transformado no país que se destaca pela tecnologia, importantes universidades e cientistas de renome internacional.

Nenhum outro povo preservou como eles a língua e as tradições, mantendo-se unido apesar das distâncias e das grandes tragédias que protagonizou. No Brasil do século 17, judeus também foram perseguidos e executados, como ilustra a história de Ana Rodrigues.

Quaisquer que fossem os sentimentos de Ana antes de sua execução, certamente não estaria entre eles a perplexidade de saber que sua história atravessaria os séculos.

Protagonista do caso mais estarrecedor envolvendo mulheres acusadas de práticas judaizantes nos documentos do Santo Ofício, Ana chegou de Portugal em 28 de dezembro de 1557 com alguns parentes e o marido, Heitor Antunes – um mercador de posses – na mesma armada do Governador-Geral Mem de Sá.

Judeu convertido à fé cristã, alcunhado de “cristão-novo”, Antunes gozava da confiança do Governador, do qual recebeu as terras de Matoim, na Bahia, onde construiu seu engenho.

O casal teve sete filhos, todos casados com “cristãos-velhos”, ampliando o grupo familiar e as suas posses.

Morto Antunes, Ana o enterrou segundo a tradição judaica, em terra virgem, esperando o momento de se juntar novamente a ele e guardando as joias de seu casamento para ser enterrada com elas.

A visitação do Santo Ofício ao Nordeste açucareiro entre 1591e 1595 trouxe à tona os conflitos sociais e a disputa de interesses entre cristãos velhos e novos.

A família Antunes foi acusada de heresia por práticas judaicas veladas e desrespeito à fé cristã. Segundo diziam os vizinhos, Heitor Antunes possuíra uma sinagoga em suas terras durante décadas. O templo sagrado teria sido construído por ele em seu engenho, numa “casinha separada”, localizada ao lado da residência e frequentada por importantes figuras da capitania.

Seu funcionamento continuou mesmo após a sua morte, com Ana, até a chegada do visitador da Inquisição, Heitor Furtado de Mendonça.

Foram muitas as denúncias que retratavam minuciosamente os costumes da matriarca e de sua família, como as práticas e interdições alimentares, as bênçãos, o luto ao modo judaico e o respeito aos jejuns – cerimônias que pelo exemplo vivo da matriarca, eram transmitidas aos seus descendentes.

Parentes próximos a Ana, principalmente filhos e netos, confessaram ou foram acusados de algumas destas práticas, embora em nenhum caso tenha-se repetido o mesmo número de acusações que pesavam sobre ela.

Temendo as consequências, alguns membros da família –  entre eles a própria Ana – tentaram amenizar as denúncias com justificativas que explicassem os comportamentos tidos como heréticos ao inquisidor.

Em seus depoimentos a Furtado de Mendonça, Ana procurou confundi-lo na apuração das culpas. Mudou versões, negou afirmações anteriores, escondeu dados importantes e prestou informações falsas ou desconexas, como as que se relacionava à sua idade.

Afirmou primeiramente ter 80 anos, depois 86 e, ainda, 110 – informação de extrema importância no processo – visto que sua idade poderia significar prova cabal de judaísmo.

O teatro armado por ela e por seus familiares, que insistiam em sua inocência, não convenceu o visitador.

Ana Rodrigues foi presa e enviada a Lisboa, em uma câmara comprada para ela, enjaulada e incomunicável, acompanhada de uma escrava para servi-la durante a viagem.

Velha e doente, morreu no cárcere, o que não a livrou de ser processada pela Inquisição. Para cumprir os preceitos determinados pelo Tribunal do Santo Ofício, sua imagem foi transformada em efígie e queimada. Sua memória foi amaldiçoada e os ossos desenterrados, queimados e transformados em pó, “em detestação a tão grande crime”.

Para evitar que seu exemplo fosse repetido, um quadro que a retratava entre labaredas e seres demoníacos foi exposto na igreja de Matoim, onde morara, além do confisco de seus bens.

Durante a segunda visitação inquisitorial ao Brasil, em 1618, ainda se comentava sobre o comportamento dos Antunes. O quadro foi roubado a mando de um seu genro cristão-velho, para evitar qualquer ligação de sua imagem com uma condenada às chamas, numa tentativa desesperada de resgatar-lhe a memória.

Como Ana, outras mulheres viveram divididas entre o catolicismo que repudiavam e o judaísmo que lhes era vedado. Mártires da religião proibida naquela época, sofreram pressões, ofensas, calúnias e discriminações por lutarem pela continuidade da identidade de seu povo.

Não foram vencidas nem pelo Santo Ofício nem pela segregação social, contribuindo para manter vivos os ideais da religião que abraçavam e os laços que tornam o povo judeu uma nação, independente do país em que se encontram.

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