Ao lembrar de alguns amigos artistas de Salto/SP, me vêm à mente as imagens que fiz da obra “O feijão e o sonho”, de Orígenes Lessa, uma leitura “inocente”, que fiz na adolescência. É um livro fininho, acessível, que integra a coleção Vaga-Lume, da editora Ática. A história gira em torno do drama de um poeta que busca seu lugar no mundo, mas é obrigado a ganhar a vida como professor numa cidadezinha do interior paulista.

A obra foi publicada pela primeira vez em 1938, quando o Brasil vivia sob a ditadura de Getúlio Vargas que, após debelar a Intentona Comunista, batizou seu regime totalitário com o bonito nome de Estado Novo. Eram tempos de extrema dificuldade para um poeta, já que mais da metade da população acima de 15 anos era analfabeta. Até mesmo a escola, esse lugar hoje quase sagrado (ao menos no discurso), era considerada desnecessária pelas famílias mais pobres. Bom mesmo era encontrar, desde cedo, um emprego numa fábrica e nela fazer carreira. Ter um filho com pendor a escritor, então, só poderia ser uma praga que se abateu sobre o pequeno sonhador.

O final de “O feijão e o sonho” traz justamente essa problemática: Joãozinho, o filho adolescente do poeta e professor Campos Lara, apresenta ao pai uma folha de papel com o primeiro poema que escrevera.

“E muito vermelho, trêmulo, o rapaz lhe estendeu uma folha. Era um poema. O pai sentiu uma turvação na vista, percebeu que o coração lhe batucava no peito. Correu os olhos pelo poema, versos livres, linguagem nova, imagens febris, uma revelação inquietante de poeta, voltado para os problemas que eram a angústia da sua geração.

Seu filho era poeta. Um arrepio de orgulho e de emoção percorreu-lhe a pele. Afinal de contas, tinha sido aquele o seu sonho toda vida. Um filho que o perpetuasse, que valesse por si, que lhe continuasse a obra. E teve o impulso de abraçá-lo. Sentiu que seus olhos se enublavam de lágrimas. Lembrou-se, porém, de sua vida. Dos anos de luta, de sonho, de tormento e de agonia criadora. Da vida árdua, humilde, sacrificada e dolorosa que vivera. Da existência que dera à família, dominado pelo seu devotamento exclusivo à arte. Da vida que dera ao próprio filho. Era essa, a vida que ele tinha diante de si. Que teriam os filhos de seu filho. E que seria talvez pior, porque não era somente a arte a chamá-lo. Outras insídias e outros desenganos o esperavam.

− Prestam? Continuo?

Campos Lara sorriu. E batendo um cigarro, o pensamento melancólico no vazio da vida, ficou olhando o filho, sem achar resposta.”

Oito décadas se passaram da realidade que motivou a obra de Orígenes Lessa. Muitas transformações políticas e econômicas ocorreram, mas a produção literária, assim como a produção artística em geral, segue numa posição muito desvalorizada, a tal ponto de ideólogos do atual Governo Federal considerarem muito bom e corriqueiro que um artista se ocupe de um trabalho qualquer para ganhar a vida e faça, lá, a sua artezinha nas horas vagas, em geral gratuitamente ou mediante remunerações vis.

Outros gestores públicos, já mais moderninhos e alinhados com empresas patrocinadoras, enxergaram nos escritores e artistas em geral ­– esse bando de miseráveis –, uma massa de manobra para seus objetivos ideológicos, políticos e até econômicos. No mais das vezes, com recursos públicos de aplicação direta ou por meio de concursos (os denominados editais) premiam com verbas provenientes de renúncia fiscal os mais “relevantes” e ajustados projetos, ou seja, aqueles que, COM DINHEIRO PÚBLICO, levam mais longe e para o maior número de pessoas seus nomes, suas marcas e suas ideias.

A arte e a cultura genuínas são uma utopia no Brasil. Até prova em contrário, somos os novos bobos da corte.

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