Mario Vargas Llosa morreu na data de ontem, domingo, aos 89 anos, como quem encerra um capítulo da história literária do século XX. Seu nome pertence a uma geração que acreditou que as palavras poderiam mover estruturas, alterar destinos, provocar reformas — não apenas no estilo, mas na própria sociedade.

Autor de uma obra robusta, inquieta, profundamente comprometida com as contradições humanas e políticas do continente, Llosa foi também um personagem de sua época: sofisticado, polêmico, elegante mesmo quando errava — e talvez justamente por isso.

Entre os nomes maiores do chamado “boom latino-americano”, figurava com naturalidade ao lado de García Márquez, Cortázar e Fuentes. Mas diferente dos outros, não buscava o encantamento, e sim o enfrentamento. Seus livros não acenavam ao leitor com promessas de beleza, mas o desafiavam com a aspereza dos impasses. A Cidade e os Cachorros, A Casa Verde, Conversa na Catedral, A Guerra do Fim do Mundo — títulos que se impõem, que não pedem aplauso nem licença.

Sua relação com García Márquez terminou como certas amizades que atravessam fronteiras de intimidade e orgulho: com um soco, um olho roxo e um silêncio que duraria décadas. O motivo, ao que consta, foi doméstico, quase banal — mas os dois, sendo quem eram, transformaram o episódio em mito. Era menos política e mais vaidade, embora ambas se confundam com frequência.

Intelectual respeitado, Llosa deixou-se, mais tarde, absorver por ideologias que o colocaram em evidência junto a setores que, em geral, desprezam a literatura. A direita o acolheu como exceção de prestígio — um raro Nobel em seu curriculo — e fez dele um emblema, mais por conveniência do que por compreensão. Llosa, de algum modo, parecia saber disso, e mantinha uma certa distância dos que o ovacionavam pelas razões erradas.

Sua vida amorosa, como sua ficção, foi repleta de enredos improváveis. Casou-se, ainda muito jovem, com a tia. Anos depois, separou-se dela para viver com a sobrinha. Mais tarde, se envolveria com uma socialite filipina, ex-mulher de Julio Iglesias. Nenhum desses detalhes seria necessário, não fossem todos eles, de algum modo, parte da atmosfera narrativa que o cercava. Llosa escrevia romances e os habitava.

Durante quase trinta anos, foi colunista do Estadão. Sua última crônica, publicada em fevereiro de 2024, abordava a verdade no jornalismo — tema sensível em tempos em que o falso costuma ter mais prestígio que o verificado. Llosa defendia a verdade com o cuidado de quem sabia que ela não pertence a ninguém, mas precisa de quem a escreva com responsabilidade.

Morre, enfim, um autor que dividiu leitores, atravessou ideologias e resistiu ao tempo com o único instrumento realmente duradouro: a linguagem. Vargas Llosa foi um escritor que escreveu com coragem, apuro, contradição e alguma dose de solidão.

Mais do que suas opiniões, ficam seus livros. E nisso, ao contrário de sua vida, Llosa não foi ambíguo.
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Admin
8 dias atrás

Muito bom o seu relato sobre esse grande escritor Marilena. Parabéns pela visão dessa perda para a literatura. Esse registro tem o peso da importância de Llosa.