“– O senhor é que é o Mário Quintana?

– Às vezes. Porque há o Mário Quintana poeta e o Mário Quintana homem comum”.

Mário Quintana nasceu em 1906, no município de Alegrete, no Rio Grande do Sul. Alegrete fica no extremo Oeste do Estado, muito próximo da Argentina e do Uruguai.

Hoje, passados mais de 100 anos do nascimento do poeta, é uma cidade de 79 mil habitantes, mais ou menos do tamanho de São Roque. Imaginem o tamanho que tinha no início do século 20. Era pequenina, com apenas 16 mil habitantes, e de economia rural como a maioria das cidades brasileiras daquele tempo.

Filho de um farmacêutico e de uma dona de casa, Quintana foi alfabetizado pelos pais, antes mesmo de frequentar a escola de primeiras letras ali mesmo em Alegrete.

Em 1919, quando tinha 12 anos, ingressou no ginásio do Colégio Militar de Porto Alegre, em regime de internato. Tratava-se do melhor ensino da época, mas Quintana só se interessava por Português, Francês e História. Nas demais disciplinas arrastava-se com dificuldade, até que em 1924 deixou a escola e passou a trabalhar numa livraria, como desempacotador de livros estrangeiros.

O pai, frustrado por não ter conseguido formá-lo doutor, chamou-o de volta a Alegrete para ajuda-lo na farmácia. Numa entrevista ao pesquisador Giavanni Ricciardi, Quintana explicou que enxergava uma relação entre a profissão de farmacêutico e a maneira como alguns poetas e escritores cuidavam da forma. Observe-se:

Eu vejo que os poetas e escritores que têm o máximo cuidado com a forma têm alguma relação com a profissão de meu pai: farmacêutico. Eu também fui farmacêutico. Como não queria estudar – fui reprovado no terceiro ano – meu pai me chamou para trabalhar na farmácia. Naquilo é preciso medir tudo de modo certinho (…). É interessante observar: o Alberto de Oliveira, que foi o Príncipe dos Poetas Brasileiros, era farmacêutico, o Carlos Drummond de Andrade era farmacêutico; todos esses tiveram o máximo cuidado com a forma, a precisão das doses, a dose certa (…). Quanto aos prosadores, o nosso maior escritor que sempre teve cuidado com a forma era farmacêutico: Érico Veríssimo.

Sua vida pacata no interior, porém, não durou muito tempo. Em 1926, sua mãe faleceu e, no ano seguinte, seu pai. Aí, aos 21 anos decidiu mudar-se de novo para a capital gaúcha, onde viveu até o final de seus dias.

Passou a trabalhar em jornais. Inicialmente no jornal O Estado do Rio Grande, traduzia do francês telegramas enviados pelas agências internacionais de notícias. Mais tarde passou a atuar como redator.

Trabalhou também na Editora Globo e no jornal Correio do Povo, onde manteve, durante muitos anos, a famosa coluna semanal “Caderno H”.

. . . . . . . . . .

Naquelas primeiras décadas, o Rio Grande do Sul vivia sob a égide do CASTILHISMO, uma corrente política criada por Júlio de Castilhos que dominou o Rio Grande do Sul durante toda a República Velha.

Castilhos era centralizador e controlava tudo por meio de uma rede de subordinados fiéis, que o consideravam um iluminado. Adepto do Positivismo, orientou sua administração por suas ideias de ordem, moralidade, civilização e progresso, mas deu pouco valor à opinião popular, como ficou demonstrado por seu desprezo pelo voto e as repetidas acusações de fraude nas eleições.

Inicialmente essas ideias tinham alcance apenas local, mas os castilhistas foram expandindo sua influência e chegaram ao nível nacional. O auge de sua força se deu em 1930, quando promoveram um levante e alçaram Getúlio Vargas, um gaúcho de São Borja, à presidência do Brasil.

Mário Quintana tinha 24 anos nessa época e, empolgado com a possibilidade de ter um gaúcho no Palácio do Catete, alistou-se, como muitos de seu tempo, no 7º Batalhão de Caçadores Voluntários de Porto Alegre e, durante seis meses, ajudou Getúlio Vargas a derrubar Washington Luís e tomar o poder central.

Getúlio foi o mais destacado e fiel seguidor de Júlio de Castilhos. O Estado Novo nada mais foi do que o transplante para nível nacional do castilhismo.

Essa foi o único arroubo político de Quintana.

. . . . . . . . . .

Em 1934 foi publicada sua primeira tradução para a Editora Globo: o livro de contos “Palavras e sangue”, do italiano Giovanni Papini. Muitas outras vieram depois. O pesquisador Armindo Trevisan afirma que totalizaram 138 títulos, de autores como Charles Morgan, Balzac, Guy de Maupassant, Voltaire, André Gide, Virgínia Woolf, Aldous Huxley e Graham Green. Acrescenta, ainda, que “suas versões de Marcel Proust são unanimemente consideradas obras-primas”.

Em 1940, publicou seu primeiro livro, reunindo 35 sonetos sob o título de “A Rua dos Cataventos”. A crítica desmereceu a opção de Quintana pelos sonetos, que eram vistos pelos modernistas como empecilho à expressão livre.

Naquele tempo, o soneto estava muito desmoralizado. Desde que comecei a escrever sempre fiz poemas de todo jeito, segundo a forma que fosse mais apropriada. Uns eram sonetos, outros eram canções, outros eram poemas francamente surrealistas, oníricos, outros eram quartetos. Então, achei que devia provar que o soneto era também um poema. Provei. “A Rua dos Cataventos” foi um bruto sucesso.

O segundo livro, intitulado de “Canções”, veio em 1946, quando Quintana já estava com 40 anos.

Entre 1947 e 1953, publicou 5 livros:

“Sapato Florido”, 1948

“O Batalhão das Letras” (infantil), 1948

“O Aprendiz de Feiticeiro”, 1950

“Espelho Mágico”, 1951

“Inéditos e Esparsos”, 1953

A década seguinte, de 1960, Quintana trabalhou exclusivamente no Caderno H e não publicou nenhum livro, mas ganhou reconhecimento em todo o Brasil.

No final dos anos 70, tentou uma vaga na Academia Brasileira de Letras. Em três candidaturas foi derrotado nas três vezes, por pessoas, talvez de menor mérito literário, mas certamente de maior trânsito político entre os acadêmicos.

Nesse tempo, quando o poeta já se encaminhava para os 70 anos, os estudiosos apontam para uma renovação na obra de Quintana, não pelo estilo, mas pela temática. Além do toque humorístico e do lirismo, aparece uma dimensão erótica e uma visão mais metafísica da morte.

Foi quando ele lançou:

“Apontamentos de História Sobrenatural”, 1976

“Quintanares”, 1976

“A Vaca e o Hipogrifo”, 1977

“Esconderijos do tempo”, 1980

Sua carreira como autor de livros para crianças também ganhou impulso, com a reedição de “O batalhão das letras” e o lançamento de “Lili inventa o mundo”, “O sapo amarelo” e “Sapato furado”.

A partir de 1978, a poesia de Quintana ganhou repercussão no exterior, com a tradução da obra “O Caderno H” para o inglês e para o espanhol.

Em 1981 recebeu o Prêmio Jabuti de Personalidade Literária do Ano.

Obra poética (19)

Livros infantis (6)

Antologias (14)

. . . . . . . . .

Texto de apoio

A poesia: de Mario Quintana sempre chega como uma espécie de sussurro. A palavra é soprada num tom baixo, numa voz comum que não pretende, jamais pretendeu, ultrapassar certos limites de educação e civilização. Quintana faz parte daquele grupo de poetas que não teve a pretensão de gritar por sobre os muros o seu rancor, o seu ódio às transformações vertiginosas do século XX. Enquanto as cidades se modernizavam rapidamente, o poeta, na sua imaginação, as reconstruía em seus velhos costumes e modos de viver, como, se sonhasse com um lugar mais acolhedor e mais provinciano.

Mas é neste seu tom menor, nesta negação irônica da modernização, que a utopia se revela. Revela-se na nostalgia de uma época em que todos eram pequenos trabalhadores e que viviam num mundo comum e solidário: o sapateiro, o carpinteiro e o poeta, “operário triste”, que registrava o cotidiano coletivo. Como ele mesmo escreveu em um de seus sonetos de A Rua dos Cataventos: “Eu nada entendo da questão social Eu faço parte dela, simplesmente…”.

A solidão, traço frequente dessa poesia, palavra que ganha matizes coloridos nos seus versos, não é a solidão destruidora do poeta romântico que, incompreendido pela sociedade, não encontra outra saída a não ser a morte. Em Quintana, a incompreensão não é uma barreira intransponível, Ele a transpõe, procurando, com seus versos, a integração entre os homens; é o sonho de uma vida mais humana, mais pura, mais próxima, mais verdadeiramente afetiva. É um entendimento, para além do dogmático, da questão social. Esta antologia, feita por Tania Franco Carvalhal quando o poeta completou 80 anos, é o sumo de uma intensa atividade literária. Aqui, a graça, a ingenuidade quase infantil de alguns poemas, a descrição simples e precisa da realidade compare­ cem e pedem uma leitura amistosa. É a palavra do poeta fazendo e gerando amigos.

Heitor Ferraz Mello

. . . . . . . . . .

Desde que se mudou para Porto Alegre, Mário Quintana sempre viveu em pensões e hotéis, especialmente no antigo Hotel Majestic, entre 1967 e 1980. Em 1983, o prédio do hotel foi tombado como patrimônio histórico do Estado do Rio Grande do Sul, transformado em Casa de Cultura Mario Quintana. O poeta ganhou uma casa de cultura com seu nome, mas perdeu a morada fixa. Quem resolveu o problema foi o ex-jogador de futebol Paulo Roberto Falcão, que lhe ofereceu um quarto em um hotel de sua propriedade.

Mario Quintana morreu no dia 5 de maio de 1994, perto de completar 88 anos.

Como ocorre com diversos poetas e cronistas, há muita confusão com suas obras na TV e na internet. Circulam textos atribuídos e ele que não são dele e, ainda, poemas alterados. Até mesmo o respeitado apresentador Antonio Abujanra, no Programa Provocações de 30/10/2009, declamou uma versão apócrifa do poema “Seiscentos e Sessenta e Seis”, sob o título “O tempo”.

 

Manuel Bandeira o homenageou com o seguinte poema:

Meu Quintana, os teus cantares

Não são, Quintana, cantares:

São, Quintana, quintanares.

Quinta-essência de cantares…

Insólitos, singulares…

Cantares? Não! Quintanares!

. . . . . . . . .

O auto-retrato

No retrato que me faço

– traço a traço –

às vezes me pinto nuvem,

às vezes me pinto árvore …

 

às vezes me pinto coisas

de que nem há mais lembrança …

ou coisas que não existem

mas que um dia existirão …

 

e, desta lida, em que busco

– pouco a pouco ­

minha eterna semelhança,

 

no final, que restará?

Um desenho de criança …

Corrigido por um louco!

 

Ah! Os relógios

Amigos, não consultem os relógios

quando um dia eu me for de vossas vidas

em seus fúteis problemas tão perdidas

que até parecem mais uns necrológios …

 

Porque o tempo é uma invenção da morte:

não o conhece a vida – a verdadeira –

em que basta um momento de poesia

para nos dar a eternidade inteira.

 

Inteira, sim, porque essa vida eterna

somente por si mesma é dividida:

não cabe, a cada qual, uma porção.

 

E os Anjos entreolham-se espantados

quando alguém – ao voltar a si da vida ­

acaso lhes indaga que horas são …

 

Paz

Os caminhos estão descansando…

 

Carreto

Amar é mudar a alma de casa

 

Poeminha do contra

Todos esses que aí estão

Atravancando o meu caminho,

 

Eles passarão…

Eu passarinho!

 

Seiscentos e sessenta e seis

A vida é uns deveres que nós trouxemos para fazer em casa.

Quando se vê, já são 6 horas: há tempo…

 

Quando se vê, já é sexta-feira…

Quando se vê, passaram 60 anos!

Agora, é tarde demais para ser reprovado…

E se me dessem – um dia – uma outra oportunidade,

eu nem olhava o relógio

seguia sempre em frente…

E iria jogando pelo caminho a casca

dourada e inútil das horas.

 

Mãe

Mãe são três letras apenas

As desse nome bendito:

Três letrinhas, nada mais…

E nelas cabe o Infinito

E palavra tão pequena

– confessam mesmo os ateus –

É do tamanho do Céu

E apenas menor que Deus…

 

Mentira?

A mentira é uma verdade que

Se esqueceu de acontecer

 

O sonho

Sonhar é acordar-se para dentro.

. . . . . . . . .

Para os confrades que reclamaram alguns poemas de Quintana com o toque mais erótico de que falei:

 

O colegial

O vento passa lá fora

e eu, no quadro negro, imóvel

– ó muro de fuzilamento!

Morro sem dizer palavra.

O professor parece triste,

talvez por outros motivos.

Manda sentar-me

e eu carrego

ó almazinha assustada,

um zero, como uma auréola…

Rezai, rezai pelas alminhas

dos meninos fuzilados!

Por que é que nos ensinam

tanta coisa?

Eu queria saber contar

só com os dedos da mão!

O resto é complicação,

um nunca mais acabar.

Eu queria mesmo era poder estudar

teu corpo todo com a mão

até sabê-lo de cor

como um ceguinho.

E o vento passa lá fora

com a sua memória em branco.

O que ele viu, nem recorda…

e eu nada vi: só adivinho!

 

A mulher biônica

PARA LINDSAY WAGNER

 

Eu quero uma mulher biônica

 

Que me ame como uma suspirosa máquina

Do mais intenso amor.

 

Uma mulher que quase me mate…

Mas me livre de todos os ataques!

 

Eu quero, eu quero uma mulher biônica

Para que eu possa, a qualquer momento,

Desparafusá-Ia…

 

O umbigo

O teu querido umbiguinho,

Doce ninho do meu beijo

Capital do meu Desejo,

 

Em suas dobras misteriosas,

Ouço a voz da natureza

 

Num eco doce e profundo,

Não só o centro de um corpo,

Também o centro do mundo!

 

Apresentada à Academia Saltense de Letras em 05/10/2013.

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