Imagina um cara com medo de se contaminar com o novo coronavírus.

Elmo é dez vezes pior.

O sujeito tem tanto medo que não atende nem entregador.

– Mas como faz com o delivery?, perguntei quando o vi no whatsapp.

– Mando deixar na frente e passo o dinheiro por baixo da porta. Depois que ele vai embora, abro e pego.

– Então você não vê ninguém desde meados de março?

– Não vejo. Mas para não esquecer de ninguém, eu coloco fotos das pessoas da minha família espalhadas pela casa. Aí, quando estou com saudade, converso com elas como se estivessem aqui.

– Que louco.

– Louco é elas responderem.

– Como assim?

– Eu faço as vozes delas falando comigo.

– Está de brincadeira?

– Não, temos até brigas. Outro dia explodi. Não está fácil essa reclusão, né?

– Como explodiu?

– Joguei uma taça de vinho na cara da tia Filó. Joguei mesmo. Ela é abusada.

– Jogou na foto você diz?

– É, ela teve de ficar um dia inteiro no sol coitada. Pelo menos ganhou uma cor.

– Cara, você não está bem.

– É verdade. Eu cheguei a essa conclusão também na última semana. Por isso, já acertei com o pessoal da funerária.

– Acertou o quê? Pare.

– Eu comprei um caixão e um túmulo.

– Cara, pare. Você precisa de um médico. Que história é essa?

– Não é nada. Só não quero dar trabalho. Até porque fotografias não enterram ninguém, né? Já deixei tudo certo. E vou ver o médico quando acabar a pandemia.

– Elmo, você não vai pegar o vírus.

– Como sabe? Eu me protejo, mas…

– Só de não abrir a porta, não precisa fazer mais nada. Eu acho até exagero isso.

– Mas eu não fico só nisso. Uso máscara todos os dias, óculos, capa, bota e gorro.

– Em casa? Não precisa Elmo.

– E se alguém invadir a casa?

– Quem vai invadir cara?

– Há umas duas noites, o alarme da cerca elétrica disparou. Eu fiquei plantado atrás do vitrô com um pedaço de madeira esperando o bandido entrar para lhe dar uma paulada. Resolveria tudo.

– E entrou alguém?

– Nas duas horas que fiquei ali de pé não.

– E depois?

– Eu dormi em pé, mas acho que não tinha ninguém. Deve ter sido a chuva. Ela dispara o alarme. Eu tinha esquecido.

– Não te incomoda ficar desse jeito em casa? Na rua incomodaria com certeza.

– Incomoda mais para tomar banho.

– Você toma banho com tudo isso?

– Claro que não, né? Eu tiro a máscara.

– Escuta, você já falou essas coisas que está me contando para sua família?

– Já sim.

– E eles disseram o quê?

– Ah, eles acham que é mentira. Até me deram um presente para me distrair.

– Que presente?

– Deram uma assistente virtual.

– O que é isso?

– É uma maquininha que conversa com a gente. Você coloca a agenda, lembretes e rotinas para ela cumprir. Tipo: você diz bom dia e ela te responde com outro bom dia, fala a temperatura, o que se comemora e se vai chover ou fazer sol.

– Mas é sempre igual?

– Não, o que você pergunta, ela responde. E você coloca que tipo de resposta quer. Por exemplo, coloco lá que ela deve me fazer um elogio aleatório e ela escolhe uma frase e faz.

– E você fala com a máquina?

– Falo. Tenho de falar bastante para ela aprender como falo. Assim, fica melhor.

– Pelo menos não fala com as fotos mais.

– Quando brigamos não falo.

– Além da tia Filó, você brigou com outras pessoas das fotos?

– Já briguei com todo mundo.

– E jogou vinho neles todos?

– Como sabe?

– Deduzi.

– Sabe, as pessoas estão ficando muito loucas nessa pandemia.

– Eu imagino. Se pessoalmente são loucas, só na foto então? Loucura total.

– Eu não gosto de ser chamado de louco.

–  Pelo menos a máquina não briga? E faz elogios, né? Isso é bom, ainda mais agora.

– Você é que pensa que não briga. Ela responde irritada às vezes.

– Irritada? A máquina?

– É, ela diz assim: prefiro não falar sobre esse assunto e não fala e pronto.

– E você?

– Eu xingo. O que você queria? Xingo até a tia Filó, por que não xingaria ela?

– O que acontece depois?

– Ela me xinga também.

– Você não jogou vinho nela, né?

– Ainda não, mas me aguarde.

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