Do quanto se ouvia de uma parede para outra
Há muito tempo, quando eu ainda era um adolescente, morei em um conjunto de casas conjugadas em Salto.
Essas casas ficaram muito conhecidas na cidade e chegaram a ter o nome pejorativo de cortiço.
Para nós, que morávamos lá, elas não passavam de simples imóveis geminados, muito comuns antigamente.
Era o Rei da Vila.
A construção ficava na região próxima onde hoje funciona a cooperativa de médicos Unimed e que na época era por onde a cidade crescia e se desenvolvia.
Não passavam de vinte casas.
De qualquer forma, sendo cortiço ou casas geminadas, um traço que era comum naquele lugar e que sempre foi muito marcante para mim era a fofoca.
Nesse local todo mundo sabia da vida de todo mundo.
Talvez por causa da proximidade e do quanto se ouvia de uma parede para outra.
Lembro que um dos vizinhos era um padeiro.
Rapaz jovem ainda, vindo do nordeste, ele queria vencer e formar uma família, mas nunca conseguiu.
E todo mundo falava mal da vida dele por isso.
O coitado não podia nem se defender. Trabalhando à noite sempre, estava com sono frequentemente e passava o dia dormindo, longe do burburinho, embora fosse afetado por ele.
Ele não conseguia acompanhar a vida da comunidade que habitava ali da mesma forma que ela acompanhava a vida dele.
Essa era, aliás, a razão para o falatório contra ele.
Divaldo ficou famoso na comunidade por perder namoradas.
A cada uma que arranjava ele era trocado por outro.
O problema era um só: não conseguia dar assistência.
Estava sempre trabalhando de noite e elas queriam sair. Nos finais de semana, também não saia porque dormia. O único dia em que conseguia era o da folga, mas era um dia só e isto acontecia apenas duas vezes por mês.
Boa gente, ele não reclamava quando elas se irritavam. Ao contrário, tentava contemporizar. Admitia até que saíssem sozinhas para não ficarem tão zangadas.
Era aí que elas iam embora. Quando saiam, encontravam gente com mais tempo. Esses eram os seus piores rivais.
O famoso ditado popular “Quem não dá assistência abre concorrência” foi sempre a sua mais dura realidade.
O coitado, às vezes, nem era avisado que fora trocado.
Uma das namoradas deixou que ele comprasse móveis a prestação e que desse até entrada em uma casa para viver com ela. Só depois ela disse que já estava com outro.
Quando ele foi avisado que tinha sido passado para trás era tarde e o coitado ficou com as dívidas. Teve de vender a preços mais baixos para não se enforcar.
Depois de muito tempo, ele voltou a arranjar uma namorada. Ao contrário das outras, essa era super compreensiva.
Roseli não se incomodava porque Divaldo não podia sair.
– Fico em casa e aproveito para orar, ela dizia.
Evangélica, se apresentava como uma moça realmente de família. Vestia-se com roupas pouco atraentes e não usava maquiagem em excesso como as outras.
Divaldo achou que tinha tirado a sorte grande.
Chegou a ligar para a mãe em Garanhuns para falar da nova namorada, empolgado que estava.
Mas outro ditado popular veio fazer parte da sua vida: “Não existe bom marinheiro com mar calmo”.
Um dia ganhou uma folga inesperada e não pensou duas vezes: foi visitar Roseli de surpresa.
Ao chegar à casa dela, encontrou um homem: Roberto.
– Quem é você?, perguntou assustado.
O tal homem não sabia como responder e nem o que responder. Ele não tinha uma resposta.
Na verdade, Roberto era Roseli.
Ele era um travesti que se apaixonara pelo padeiro.
Apesar do susto da descoberta, Divaldo não terminou o namoro nem se ofendeu com a realidade.
Gostava de Roseli já e a calma dela o alegrava muito.
O problema foi que as pessoas que moravam no Rei da Vila não se conformaram. Passaram a fazer gozações com o padeiro e a ridicularizar Roseli.
O pior aconteceu no dia do aniversário da namorada.
Divaldo montou uma festinha para ela no seu quarto no Rei da Vila e quando ela chegou foi linchada e morreu.
O padeiro ficou tão desconsolado que nem foi trabalhar. No dia seguinte não tinha pão para ninguém, mas essa não foi a pior notícia. A que foi a pior é que a padaria o demitiu.
Se todas as pessoas que cuidam da vida da gente realmente tivessem interesse em nós, seríamos os melhores.
O problema é que ninguém cuida realmente da vida da gente. Em vez disso, cuidam é do escândalo.
Quase nunca o que é “notícia” para fofoqueiros é verdade.