Cartas como fontes históricas
Recentemente, finalizei a leitura de uma nova publicação elaborada pela Academia Ituana de Letras (Acadil), instituição, aliás, que mantém um repertório de publicações ricas em qualidade e variedades de conteúdo, demonstrando o fôlego de seus acadêmicos, imortalizando seus nomes e de seus Patronos ou Patronesses através das letras, ultrapassando os limites do município.
A Série Patronos: Euclydes de Marins e Dias é a mencionada publicação. Como estudioso da história regional, a obra apresenta dois gêneros que tenho um prazer especial para leitura: biografia e cartas. A primeira, no campo da história, se faz importante e perigosa, isso porque através da biografia de uma pessoa, de uma instituição ou biografia de um coletivo de pessoas, pode-se revelar aspectos curiosos de vida que fazem com que pensemos (ou repensemos) as influências do biografado, seus métodos e manias, como e por que pensava e/ou agia de determinada maneira, isso tudo contextualizado à história de seu tempo, pode abrir para o campo da interpretação do pensamento da própria época, sendo possível a abordagem cultural, política e/ou econômica. Agora o perigo: a narrativa pode ser influenciada de acordo com os interesses daquele que a escreve. Imagine um conservador escrevendo a história da vida de Che Guevara ou um socialista abordando a vida política de George W. Bush…
Bom, o parágrafo acima foi apenas uma introdução para reflexão, o livro ao qual faço referência relata o envolvimento cultural daquele que é o Patrono da Cadeira de número um da mencionada Academia, o poeta e cronista Euclydes de Marins e Dias (1903-1969), uma pessoa daquelas que deveria ter inúmeras histórias para contar. No ano em que a chamada “Revolução Constitucionalista” completa seus noventa anos, o Patrono da Cadeira número um seria um daqueles personagens para amarrar com essa história, abrindo espaço para uma biografia política de Marins e Dias:
Em 1932 alistou-se como soldado constitucionalista, desempenhando funções na Intendência, pois também era presidente da Campanha do “Ouro para o bem de São Paulo” na região de Assis. Nesse mesmo ano foi preso pelas tropas do General João Francisco, na cidade de Presidente Prudente. (CASELLI, 2021)
Mencionei a participação de Euclydes Marins e Dias na Revolução para ilustrar as possibilidades ao analisar biografias e seus respectivos contextos históricos. Além disso, a publicação nos dá um panorama do intelectual, abrindo espaço para questionamentos em um recente campo de estudo da historiografia: a história intelectual. Marins e Dias, como já mencionado, era um desses intelectuais do século XX, sua filha, a Dra. Maria Lúcia Almeida de Marins de Dias Caselli, ocupante da Cadeira cujo pai é Patrono, é guardiã dessa história intelectual.
Dentre as preciosidades da Casa Imperial, aonde reside há cinquenta anos a acadêmica Maria Lúcia Almeia de Marins e Dias Caselli, conservam-se o arquivo e a biblioteca do Patrono da Caderia 01 da Academia Ituana de Letras, Euclydes Marins e Dias. É que a filha não descuidou dos alfarrábios do pai: os livros, os artigos e crônicas publicados ou lidos pela rádio ou mesmo a correspondência. (FRANCISCO, 2021)
Como já mencionado, o mesmo livro traz cartas, estas enviadas pelo cronista e memorialista ituano Francisco Nardy Filho (1879-1959), também Patrono na Acadil, sendo que “as dezoito cartas agora transcritas datam entre 1946 e 1956”. (FRANCISCO, 2021).
Cartas são outras importantes fontes para analisar e narrar biografias. Com um olhar atento, o pesquisador pode retirar informações preciosas, desvendar o subjetivo ou mesmo se divertir (e por que não se emocionar) ao ler as cartas trocadas. Este que aqui escreve já nasceu em uma época em que as comunicações à distância aconteciam por ligações ou SMS. No ano de 2017, o Jornal Primeira Feira entrevistou-me por ocasião da minha posse na Academia Saltense de Letras (ASLe). Uma das perguntas era se eu acreditava que a sociedade atual lê pouco, a resposta foi que não, repito aqui o que mencionei na ocasião, na verdade acredito que estamos lendo bastante, porém vale refletir sobre a qualidade de tal leitura. Poderíamos entrar em um debate intenso sobre os novos meios e modos de comunicação, porém mencionei o exemplo para elucidar a velocidade e superficialidade das conversas instantâneas via aplicativos como o WhatsApp ou Messenger. Ao ler cartas e entende-las como fontes históricas, nota-se a profundidade de uma resposta, a preocupação em transmitir bons votos, em perguntar “como andam as coisas” ou mesmo solicitar algum favor.
Na correspondência “Nardy-Euclydiana”, como mencionado no livro, é possível notar a amizade e o carinho entre dois intelectuais de Itu do século passado, o carinho com que Nardy encerrava algumas de suas cartas: “Seu amigo e admirador, Chiquito Nardy”. (ACADIL, 2021).
Tomo a liberdade de expressar mais um gosto pessoal: ler e descobrir curiosidades acerca da vida do cronista Nardy Filho. Para quem estuda, ou ao menos se interessa pela história ituana, é impossível não passar pela obra do memorialista. Para os leitores do “dedinho de prosa”, em sua maioria da cidade de Salto, é como querer estudar a história da cidade e não ler Luiz Castellari ou Ettore Liberalesso como um “despertador” ou ponto de partida para novas abordagens. Por falar em Castellari, e retomando ao assunto das correspondências, o Museu Municipal Ettorre Liberalesso, em Salto, mantém um rico acervo de correspondências enviada e recebidas pelo pesquisador saltense. Tais documentos revelam parte da trajetória de Castellari enquanto pesquisador, suas preocupações em biografar a cidade com base em fontes primárias, recebendo, inclusive, elogios de Afonso d’Escragnolle Taunay (1876-1958). Veja um trecho da carta enviada pelo historiador, sendo um dos responsáveis pela construção da narrativa dos bandeirantes ao longo do século XX ao historiador saltense após este solicitar a leitura de sua pesquisa sobre a terra natal:
São Paulo, 9 de dezembro de 1942
Prezado sr. Luiz Castellari
[…] ocorre a impressão de que o Sr. Realizou um trabalho de pesquisas muito dilatado e inteligente que lhe deve/ ter dado muito que fazer.
[…] todos os nossos municípios precisariam ter uma monografia do gênero da que o Sr. realizou. Por isso dou-lhe os parabéns e faço muitos votos para que a Prefeitura saltense/e os saltenses concorram para que logo se imprima a sua prestimosa monografia. (TAUNAY, 1971)
Peter Burke, historiador britânico, cita a importância das cartas como fontes de estudo:
Cinquenta anos depois da invenção da impressão, o grande humanista holandês Erasmo já pensava em publicar uma coletânea de suas cartas, algumas das quais reviu ou reescreveu com esse propósito. Para os detalhes da vida de um indivíduo, coletâneas de cartas […] devem ser tratadas […] como memórias e autobiografias. Ainda assim, como documentos da autoimagem da pessoa, são inestimáveis. (BURKE, 2009)
Detalhes que servem como curiosidade também chamam a atenção, por exemplo, quando em uma das cartas Nardy menciona que vai à missa do Carmo, na Aclimação (São Paulo) todos os dias. Aspectos da fé, da vida privada, acabam sendo revelados.
Pois bem, a Acadil começa a nova série de publicações com um baita presente para Itu, um livro grandioso pela sua capacidade de não só divulgar os Patronos da instituição, como inspirar reflexões como esta que acabamos de prosear.
Recomendo a leitura da Série Patronos: Euclydes de Marins e Dias.
ACADIL. Série Patronos: Euclydes de Marins e Dias. Salto: FoxTablet, 2021.
CASELLI, Maria Lúcia Almeida de Marins e Dias. Euclydes de Marins e Dias. In.: ACADIL. Série Patronos: Euclydes de Marins e Dias. Salto: FoxTablet, 2021.
BURKE, Peter. O Historiador como Colunista. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009.
FRANCISCO, Luís Roberto de. Correspondência Nardy-Eclydiana. In.: ACADIL. Série Patronos: Euclydes de Marins e Dias. Salto: FoxTablet, 2021.
TAUNAY, Afonso d’Escragnolle. Apresentação. In.: CASTELLARI, Luiz. História de Salto. Salto: Taperá, 1971.