Antítese da vida
ELA SEMPRE ESTEVE ALI – a antítese da vida. Desde o primeiro vagido – o urro provocado pela primeira dor, a do nascimento, garantia de outras mais.
Não sei dizer quando a notei escondida num canto, como um rebento semelhante a um bulbo, pronto para eclodir.
Certamente viveu submersa no grande lago infantil de difícil travessia, na turbulência das tempestades púberes ou como prisioneira, quando travestida em cavaleiro de armadura e lança em punho, eu desafiava o mundo em batalhas alucinantes contra moinhos de vento.
É possível que tenha se alimentado de nesgas de sonhos, fiapos de ilusões, alegrias fugidias, das parcas generosidades recebidas ou das fugazes conquistas – tornadas fracassos nos embates seguintes.
Teimosamente se escondeu nas dobras do perpétuo movimento de transmutação da vida e navegou à espreita, por anos a fio, aguardando o tempo de se fazer presente.
Talvez tenha acalentado muitos desencantos e desamores, na esperança de um acolhimento rápido.
De certo, no entanto, é que um dia dei por ela abrigada nas sombras. Foi o sinal. Como planta rasteira se alastrou pelo chão aos centímetros. Ganhou os cômodos e subiu pelas paredes, trazendo consigo um forte cheiro de mofo.
Manifestou-se na poeira dos móveis, nas cortinas sem cores, nas janelas embaçadas, nas brancas toalhas transmutadas em creme e nas louças descascadas.
Fez-se presente nas lembranças distantes dos risos infantis e dos balões coloridos, dos ancestrais e amigos ausentes, das fragrâncias, sensações e sabores perdidos. Tornou-se visível na opacidade do meu olhar, na falta de sonhos e no marasmo dos dias.
Não me lembro quando a vi pela última vez. Da cadeira cativa que ocupava, eu contemplava os intermináveis nasceres e pores de sol. Tantos que perderam a identidade. E nessa confusão de papéis, uma tinta rubra encobriu o horizonte, apagando para sempre da memória qualquer importância sobre o fato.
Maio/2017