Quando eu era criança meu pai me apresentou um homem, dizia ser seu amigo, sujeito estranho, um maluco beleza, como ele mesmo se intitulava. Pregava como um Messias, mas parecia um tanto indeciso, questionava tudo e a todos, dizia que havia ficado muito tempo calado e agora era hora de expor tudo que sabia. Quando criança, suas palavras não me faziam muito sentido, mesmo assim passei a ouvi-lo com certa frequência. Duvidei quando o homem disse que veio ao mundo há dez séculos, hoje até acredito, na verdade, aquele sujeito me parece atemporal. Ainda não sei dizer se ele é bom ou ruim, buscava uma tal pedra do gênesis, porém receava se deparar com o ouro de tolo.

Certo dia entrei na sala e lá estavam eles tendo um dedinho de prosa, meu pai, o maluco beleza e mais uma pessoa que conheci ali, um tal de Pedro, que comia uma maçã com olhar confuso. Pedro era amigo daquele homem, quando me viu falou: escute essa, garoto, Raul tá falando de uma nova sociedade, onde nós mesmos faremos nossas regras, uma Sociedade Alternativa. A propósito, sou Pedro, você deve ser o Rafa, né?!

Pausa para três observações: I. Meu nome composto é Rafael, carinhosamente minha família me chama de Rafa; II. Nunca mais vi Pedro, apenas escutava Raul falando; III. Descobri que o nome do contator de histórias era Raul.

Voltando…

Após Raul mencionar a estrutura da tal Sociedade Alternativa e pontuar algumas de suas leis, os três soltaram um VIVA, bem alto. Todos caímos em risadas, mesmo que eu não entendia bulhufas do que foi dito. Hoje, algumas décadas depois, eu digo: VIVA a Sociedade Alternativa.

O tempo passou e, já adolescente, não me lembro ao certo, creio que tinha uns dez ou onze anos, o patrão do meu pai na época me deu um caderninho, nele estava escrito “basta ser sincero e desejar profundo, você será capaz de sacudir o mundo”. Achei a frase linda, retirei-a do caderninho e coloquei no coração. Não que eu quisesse entrar pra história ou provar alguma coisa, isso deixo pra vocês, absorvi aqueles dizeres para ser melhor para mim mesmo e para os meus. Não sou besta para tirar onda de herói, quero sacudir apenas o meu mundo.

Não tive grandes contatos com meu pai, quis a vida que ele fosse um cowboy fora da lei, mesmo não infringindo lei alguma, apenas a si próprio. Apesar disso, nossos encontros eram sempre muito bons e divertidos.

Hoje, quando a solidão me assusta, olho para um e para outro, conservando meu medo, me sento à mesa com Raul, o amigo do meu pai. Quando isso acontece, parece que posso sentir ali a presença do sr. Marco Ribeiro (1974-2021), contando suas histórias da época da escola, dos campeonatos de futebol na cidade e do teste para jogador profissional junto ao Juninho Paulista. As lágrimas correm pois ainda estou aprendendo a perder o medo da chuva…

No dia 22 de dezembro de 2021 o trem das sete passou e levou meu pai desta metamorfose ambulante que é a vida.

***

Como escrevi há algumas semanas, ando muito nostálgico.
Texto em homenagem a Marco Antônio Ribeiro, o Marquinho, meu pai.

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Adriana Almeron
14 horas atrás

Em pensar que Raul Seixas nos deixaria tantas cabeças pensantes em décadas diferentes, porém muito atuais. Ser nostálgico, nos fortalece, nos ajuda a crescer, nostalgia também nos faz refletir para não sermos banais . Parabéns! Prof Marco.

Alexandre de Aquino Fittipaldi
12 horas atrás

Marco, lembro bem de uma conversa nossa em que falamos sobre a importância de Raul Seixas para nós, meros espectadores da vida. Suas frases e palavras sempre fizeram muito sentido. Inclusive, compartilhei com você sobre o dia em que usei Metamorfose Ambulante em uma aula de Neurociências com meus alunos.
Sei que há tantas músicas dele que podemos explorar com essa nova geração, pois elas refletem a vida em sua essência, muitas vezes de forma crua e verdadeira.
Parabéns pelo artigo, meu amigo. Ficou incrível!
Um grande abraço.