Cem anos de Clarice Lispector…
Há cem anos, em 10 de dezembro de 1920, na Ucrânia, nascia Clarice Lispector, reconhecida como uma das mais importantes escritoras do século XX. Em decorrência da perseguição aos judeus durante a Guerra Civil Russa, ainda criança de colo, imigrou com seus pais e suas duas irmãs mais velhas para o Brasil. Embora tenha nascido na Ucrânia, Clarice sempre se considerou brasileira e pernambucana. A esse respeito, a escritora dizia “Naquela terra eu literalmente nunca pisei: fui carregada de colo”, afirmando, assim, que sua verdadeira pátria era o Brasil.
Seu primeiro romance, Perto do Coração Selvagem” (1944), foi bem recebido pela crítica brasileira, que chegou a comparar seu estilo com James Joyce e Virgínia Woolf, em razão de alguns elementos comuns, como o fluxo de consciência, manifesto no monólogo interior, isto é, na conversa íntima que os personagens mantêm consigo mesmos.
A presença desse tipo de recurso torna a narrativa digressiva e fragmentária. Na verdade, trata-se de um jeito novo de se contar uma história, o romance introspectivo, cujo enredo importa menos que o mergulho do narrador no fluxo de pensamento do personagem. A própria escritora afirma “Meus livros, felizmente, não são superlotados de fatos, e sim da repercussão dos fatos no indivíduo”. A reflexão dos personagens é parte dos enredos de Clarice Lispector, cujas temáticas são existenciais e psicológicas. E muitas vezes, o eu dos personagens se revela na relação com o outro, por isso não se pode dizer que a obra de Clarice sofra de excesso de subjetivismo.
Outra característica de seu estilo é o uso da epifania – momentos de revelação e de autodescoberta dos personagens face a acontecimentos corriqueiros da vida. Aliás, esse procedimento é típico da escritura sagrada judaico-cristã, com a qual a autora estabelece constante inter-relação. Suas protagonistas são, geralmente, mulheres, o que costuma lhe conferir o rótulo de literatura feminina. Porém, as personagens de Clarice Lispector vivenciam conflitos psicológicos que superam os limites do gênero e, também do espaço, pois, apesar de muitas de suas narrativas se passarem no Rio de Janeiro, cidade em que vivia, sua obra tem dimensão universal.
Para finalizar, é impressionante e, às vezes, até surpreendente, como se manifesta a espiritualidade da autora, que conhece bastante as escrituras sagradas. De fato, é notória a intertextualidade que a autora estabelece com a literatura bíblica. Sua relação com Deus é sempre complexa, indagatória e enigmática, e isso transparece em várias de suas obras. Em seu romance A Paixão Segundo G.H., por exemplo, a autora mantém um diálogo constante com o texto bíblico, seja por analogias, como a que se dá entre a paixão humana e a paixão de Cristo, seja pela íntima conexão com o livro do Êxodo, do Gênesis e do Apocalipse, dos quais cita algumas passagens, seja ainda pelo próprio vocabulário, repleto de termos que remetem ao livro sagrado, como “tentação”, “milagre”, “paraíso”, “inferno”, “danação”, “graça”, “sacrifício”, dentre tantos outros.
No percurso místico da travessia de seu deserto, ela busca purificar-se, transcender o caráter concreto do sensível, entregar-se à imensidade do Amor para descobrir, por um “golpe da graça”, que o “amor já está, está sempre”: “E no soluço o Deus veio a mim, o Deus me ocupava toda agora. Eu oferecia o meu inferno a Deus. O primeiro soluço fizera – de meu terrível prazer e de minha festa – uma dor nova: que agora era tão leve e desamparada como a flor de meu próprio deserto.” (A paixão segundo G.H., p.131).
Renascia a cada livro: “Escrevo porque (…) não suporto mais a rotina de me ser e se não fosse a sempre novidade que é escrever, eu me morreria simbolicamente todos os dias” (A hora da Estrela, p. 21). Morre no dia 9 de dezembro de 1977, às vésperas de completar 57 anos. No hospital, já fraca, diz a uma enfermeira que a impede de sair do quarto: “Você matou meu personagem”, o que bem ilustra seu princípio de criação.
Texto de autoria da Confreira Mônica L. de A. D. Vecchia.
Cadeira número 5 – Clarice Lispector