– O senhor está bem?

A pergunta pareceu um ponto de luz no fim de um túnel escuro para Francisco, que constantemente observava a visão escurecer e voltar a se iluminar, embora a luz que conseguisse quase sempre fosse semelhante a um lampião.

A solidão causada pela pandemia agravou isto.

– Como é?

– É o seu Francisco quem fala?

– Sim, sou eu mesmo.

– Então seu Francisco, eu perguntei se o senhor está bem.

– Você quem é, minha filha?

– Eu sou a Michele do banco Itaú.

– Ah, entendi.

– O senhor está bem?

– Estou sim. Quer dizer, há muito tempo que não sei o que é estar bem. Mas minha neta dizia que a gente tem de dizer sempre que está bem. Às vezes enganamos o destino, né?

– Rsrsrsrsrs.

– Por que você ligou Michele?

– O senhor deve sim sempre dizer que está bem, porque o pensamento positivo opera mudanças na vida da gente seu Francisco. O senhor já comprovou isso?

– Eu não sei minha filha. Eu não falo com muita gente. Fora você e outras meninas de bancos, só falo com quem pede alguma coisa aqui na minha porta.

– Entendi. Mas o senhor não se sente bem? Tem quem possa chamar se precisar de ajuda?

– Eu tenho tido uma escuridão nas vistas. De repente, parece que some tudo. Aí eu escuto alguma coisa e parece que uma luz lá no fim do túnel aparece e eu volto. Se acontecer alguma coisa, é só chamar o Samu. Se não der tempo, tem de chamar a funerária mesmo.

– Puxa, seu Francisco. Não fale assim. O senhor já procurou o médico para ver esse problema?

– Já, minha filha, mas ele diz que não tem solução. É a idade. A gente fica velho e até o corpo esquece da gente.

– Eu já disse: não fale assim. Quantos anos o senhor tem?

– 87.

– É uma bela idade seu Francisco.

– Bela? Só se for para olhar de longe, né?

– Rsrsrsrsrs. Como assim?

– Quando você olha de longe, não vê direito.

– Eu acho sim uma bela idade seu Francisco. Meu avô tem 85. Eu gosto muito do meu avô. Ele me contava histórias quando eu era pequena. Depois de adulta, ele ainda me fala do seu mundo. Pena que não fale com ele há tempos.

– E o mundo do seu avô é melhor que o meu?

– O mundo de todos os avós é bom, seu Francisco. O senhor tem netos? Quais são os nomes deles?

– Tenho, mas é como se não tivesse. Eles nunca vêm aqui. Agora que estamos com essa pandemia não vão vir mais.

– Quais são os nomes deles? O senhor tem saudade? O senhor fala com eles pelo telefone?

– Marcos e Ana. Tenho sim, muita saudade. Gostava quando eram pequenos. Eles gostavam de mim. Hoje não falo com eles não. Eles nunca têm tempo.

– Que pena seu Francisco. A gente nunca devia abandonar os nossos avós. Eles são como nossos pais mais velhos.

– É verdade minha filha. Eu lembro dos meus avós. Eu ia na casa deles no sítio. A gente se divertia muito. Eu subia nos pés de manga. Meu avô vinha atrás. Depois chupava manga comigo. Quando ele morreu, estava muito velhinho já, mas eu sempre falava com ele. E olha que ele estava que nem eu estou agora.

– O senhor ainda tem muita vida pela frente seu Francisco. Ainda vai ver os seus netos. Tenha paciência.

– Obrigado minha filha. Ninguém conversa comigo, mas eu gosto de conversar. Você queria o que mesmo?

– Eu liguei para vender um empréstimo ao senhor seu Francisco, mas estou vendo que o senhor não precisa.

– E você vive de vender empréstimo?

– Vivo sim. Se não consigo que ninguém empreste, não recebo no final do mês. Em geral vendemos para pessoas aposentadas, mais idosas, como o senhor. Mas eu ligo outro dia para ver se o senhor vai precisar.

– Michele, é Michele, né?

– Sim, é Michele sim.

– Eu quero emprestar. Me fala sobre isso. Eu vou ajudar você. Você me ouviu, falou comigo. Gostei de você.

– Mas o senhor está precisando?

– Não estou. E você estava precisando falar comigo todo esse tempo? Pense que você perdeu tempo comigo.

– Não perdi não seu Francisco. Ouvir que o senhor tem saudade dos seus netos, me fez lembrar do meu avô. Não posso vê-lo agora e tenho ligado pouco para ele. O senhor me fez ver isso. Sabe aquela coisa da luz no fim do túnel?

– Rsrsrsrsrs. Então, eu que não enxergo e vejo tudo escuro e é você que vê a luz? Que bom que pensa no seu avô.

– Penso sim. Agora mais.

– Então, vamos fazer o empréstimo minha filha.

– Vamos sim.

Quando estava tudo certo e o seu Francisco deu o sim de concordância final para ficar gravado, ele emudeceu.

– Seu Francisco, seu Francisco? O senhor está aí?

Como não tinha resposta, Michele acionou o Samu.

Foi o que salvou o seu Francisco.

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